Por que fingimos com tanta naturalidade
Parece que tudo funciona melhor quando damos às pessoas aquilo que conhecem e desejam. Mais do que nos coloca em espaços de risco no trabalho e na família. Então fingir, dissimular, esconder, camuflar, simular, florear e até mentir se tornam ferramentas de socialização recorrentes nos dias de hoje.
Você já sentiu que precisa fazer um papel pra se encaixar nos grupos? Que tá sempre atuando, fingindo pra ser aceito, e que nunca tem uma conversa de verdade, daquelas que alimentam a alma? Pois é, se você já teve essa sensação, a causa provável é que a sua cognição, a sua emocionalidade, o seu pensamento são mais complexos, mais "arborizados", mais profundos, e sua imaginação é mais vívida. E a grande questão é que poucas pessoas à sua volta têm essas mesmas características.
Desde a infância, muitos de vocês foram treinados a se frear, a não se mostrar na escola porque não havia espaço para suas qualidades florescerem. A sociedade, muitas vezes, acaba abafando quem tem alta inteligência ou criatividade. O resultado? Você se sente esquisito, estranho em ser você mesmo. É como se você fosse um "alienígena" ou não pertencesse a lugar nenhum, vivendo num "outro planeta".
Essa sensação de desajuste é intensificada pela **assincronia** – a discrepância no desenvolvimento entre a sua idade cronológica e a sua maturidade mental, emocional ou social. Você pode ter a inteligência de um adulto e as emoções de uma criança num corpo infantil, ou uma compreensão de leitura avançada sem a maturidade emocional para lidar com os tópicos. Isso cria uma "luta invisível" dentro de você. Para lidar com essa diferença, a gente acaba criando uma "falsa personalidade", um "falso eu", pra tentar se encaixar. É uma busca incessante por um lugar que acolha nossa singularidade, mas muitas vezes nos leva a mascarar quem realmente somos.
O Custo Invisível da Atuação: A Energia Que se Dissipa
Essa "arte de não ser você" consome uma energia vital que poderia estar te impulsionando para a autorrealização, mas está sendo queimada nesse esforço contínuo de adaptação. Pensa comigo: se seu cérebro é "maior, mais ativo, mais sensível, mais hiperconectado" e processa informações sensoriais de forma mais intensa – cores, odores, tato, dor – o estresse da vida cotidiana já te atinge mais forte do que a maioria.
As **superexcitabilidades** (termos cunhados pelo mestre Dabrowski, viu só?!) são a prova viva disso. São cinco domínios em que a sua experiência do mundo é intensificada: psicomotora (alto nível de energia, inquietude, falar rápido), sensorial (sensibilidade a barulhos, cheiros, tato, tudo é mais intenso), intelectual (desejo compulsivo por conhecimento, busca pela verdade, análise profunda), imaginativa (criação de mundos fantásticos, imaginação vívida), e emocional (sentimentos intensos e complexos, empatia profunda). As mais desafiadoras, geralmente, são a intelectual e a emocional.
Quando você está constantemente se esforçando para ser quem não é, essa **tensão interna** é um estresse crônico. E a ciência da psiconeuroimunologia (PNI) nos mostra que o estresse crônico ativa o eixo HPA (hipotálamo-hipófise-adrenal) e pode desregular o sistema imunológico.
Ou seja, sua mente, ao tentar se "encaixar", manda sinais de perigo para o seu corpo, que entra em um estado contínuo de "luta, fuga ou congelamento", resultando em diversas consequências fisiológicas e psicológicas.
Essa energia que você gasta se consumindo na "Arte de Não Ser-Eu" poderia estar sendo usada para te regenerar, mas é queimada em:
Autoestima e autopercepção distorcidas: Você se sente pouco inteligente, não confia nas suas capacidades, se critica e se julga demais, levando a uma péssima autoestima.
Ansiedade e depressão: A falta de compreensão da sua condição pode levar a transtornos de ansiedade e depressão, com ruminação e preocupação excessiva. O estresse de ser um pai ou mãe de AHSD é muito grande e sem as necessidades supridas, podem sentir ansiedade, problemas sociais e depressão.
Solidão e isolamento: A dificuldade de se conectar em um nível profundo te faz sentir muito solitário, "existencialmente isolado".
Hiper-responsabilidade e empatia excessiva: Você se preocupa demais com os problemas dos outros, e sua empatia pode ser tão intensa que se torna "corrosiva" ou "patológica", levando você a se prejudicar para não prejudicar o outro. Você sente a ansiedade e a estreiteza do mundo.
Perfeccionismo e medo do fracasso:Você trava se não consegue fazer as coisas num nível perfeito, evita situações que colocam suas capacidades à prova, e lida muito mal com seus erros. Essa autocobrança é uma montanha que você carrega.
Instabilidade motivacional e procrastinação: Sua "motivação foguete" funciona na euforia e no hiperfoco, tornando difícil fazer tarefas rotineiras ou que não te empolgam intrinsecamente. A procrastinação é um problema comum.
Dificuldades nas funções executivas: Apesar da inteligência, podem ter problemas com organização, planejamento e controle de impulsos. Sua memória de longo prazo pode ser excelente, mas a de trabalho, fraca.
Sobrecarga de ideias (baixa inibição latente): Você pensa em uma coisa e rapidamente associa a várias outras, o que pode ser confundido com TDAH. A mente arborizada é uma característica de pessoas altamente inteligentes ou criativas.
E o pior, meu povo: essa "luta invisível" muitas vezes resulta em **diagnósticos incorretos** de TDAH, bipolaridade, depressão ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), simplesmente porque não há conhecimento suficiente sobre AHSD no Brasil. A dupla excepcionalidade (AHSD + alguma deficiência) é complexa e as habilidades podem mascarar as dificuldades, ou vice-versa.
Diante de tudo isso, surge a pergunta: como podemos reverter essa "Arte de Não Ser-Eu" e permitir que a nossa verdadeira essência, com toda a sua complexidade e riqueza, finalmente floresça?
Redescobrindo a Autenticidade: Um Caminho para a Regeneração
A saída para esse ciclo de dissimulação e esgotamento reside no autoconhecimento e na validação. Entender que suas altas habilidades e superdotação (AHSD) não são uma anomalia, mas sim uma característica neurodiversa com suas próprias necessidades e potências, é o primeiro passo. Ao invés de tentar se encaixar em padrões que não foram feitos para você, comece a explorar e celebrar suas superexcitabilidades, a compreender a assincronia e a reconhecer o valor da sua imaginação vívida e pensamento profundo.
Os Caminhos para a Regeneração e a Autenticidade:
Busca por Diagnóstico e Suporte Adequado: A identificação correta de AHSD e de possíveis duplas excepcionalidades é crucial. Procurar profissionais especializados que compreendam a complexidade dessas características pode transformar sua jornada. Um diagnóstico preciso abre portas para estratégias de enfrentamento e desenvolvimento personalizadas, que vão além dos rótulos e estereótipos.
Construção de uma Rede de Apoio Genuína: Romper o isolamento é fundamental. Buscar comunidades, grupos de apoio ou até mesmo amigos que compartilhem de suas características e compreendam suas experiências pode ser um alívio imenso. Conexões autênticas, onde você se sinta seguro para ser quem realmente é, são essenciais para alimentar an alma e reduzir a necessidade de "atuar".
Gerenciamento do Estresse e da Sobrecarga: Reconhecer que seu sistema nervoso processa informações de forma mais intensa é o ponto de partida para desenvolver estratégias de manejo do estresse. Isso pode incluir práticas de mindfulness, terapias focadas em regulação emocional, tempo na natureza, ou qualquer atividade que promova a sua regeneração e reduza a ativação crônica do eixo HPA.
Redefinição de Sucesso e Perfeccionismo: Desconstrua a ideia de que você precisa ser "perfeito" ou evitar o fracasso. Permita-se errar, aprender com os tropeços e entender que sua busca por excelência pode ser canalizada para áreas que realmente o energizam, em vez de se tornar uma fonte de paralisia e autocrítica.
Cultivo da Compaixão e Autocuidado: Seja gentil consigo mesmo. Entenda que a hiper-responsabilidade e a empatia excessiva podem ser desgastantes. Aprenda a estabelecer limites, a priorizar suas próprias necessidades e a canalizar sua compaixão de forma saudável, sem se anular.
A autenticidade não é um destino, mas uma jornada contínua. É um processo de desaprender velhos padrões e abraçar a complexidade e a beleza de quem você realmente é. Ao investir nessa regeneração e abraçar sua singularidade, você não apenas se libertará do peso da "falsa personalidade", mas também encontrará o caminho para uma vida mais plena, com conversas verdadeiras e conexões que realmente alimentam a alma. Que tal começar essa jornada de (re)descoberta hoje?