A jornada de vida de um AHSD e seus marcos temporais
Entender a jornada de alguém com AHSD não é só sobre um QI alto, é uma trama complexa de experiências, desafios e percepções únicas que moldam quem essa pessoa se torna no decorrer de sua vida.
Então, quais seriam esses marcos na história de vida que nos fazem coçar a cabeça e pensar: "Hmm, será que tem AHSD aí?"
1. Os Sinais Precoces: A Infância Desvendando um Mundo Diferente
Desde cedo, a criança com AHSD já dá os seus "sinais", que são como faróis piscando na neblina do desenvolvimento. Muitas vezes, esses sinais são confundidos com outras coisas, mas para quem tem o olhar treinado, são pistas claras.
A Mente que Não Para e Conecta Tudo (o Super Cérebro Ligado no 220V): Sabe aquela criança que faz perguntas que ninguém esperava, que parece estar sempre à frente do seu tempo? Ela tem uma profundidade de pensamento e análise que é de outro nível. Ela não só aprende rápido, mas quer dominar tudo com extremo detalhe e perfeição. É como se o cérebro dela tivesse um "acelerador de partículas" mental, fazendo links e associações que os outros demoram para pegar, ou nem pegam. Essa cognição é mais complexa, mais "arborizada". Essa capacidade de assimilar conhecimentos pode ser tão passiva que a pessoa se entedia na aula porque já entendeu tudo há muito tempo. O cérebro dela é mais funcional em diversas regiões, com maior conectividade e eficiência.
A Biblioteca Viva na Cabeça (Memória Excepcional): É comum ouvir que a pessoa tem uma memória incrível da infância, lembra de coisas como se tivessem acontecido ontem, ou de conceitos e raciocínios que pensou há 10 anos. É uma memória de longo prazo vívida. Mas, olha que curioso: essa memória excepcional para o passado pode vir acompanhada de uma memória de trabalho (ou operacional) bem ruinzinha para coisas recentes. A pessoa lembra de algo que aconteceu há 15 anos, mas esquece o compromisso das 5 da tarde!. Essa memória de trabalho, que é essencial para as funções executivas (tipo organizar o dia, seguir instruções com várias etapas), se for um desafio, pode ser confundida até com TDAH.
A Sede de Saber Inesgotável (Pulsão Epistemofílica): Eles sentem uma necessidade constante e quase compulsiva de buscar novos conhecimentos, de compreender a verdade. Isso se manifesta numa facilidade notável em aprender informações rapidamente, quase sem esforço. É a famosa "corrida para dominar" assuntos complexos.
A Sensibilidade em Alta Definição (Superexcitabilidades): As pessoas AHSD vivenciam o mundo de forma diferente, mais intensa, mais profunda. É como se os sentidos estivessem em 4K. Elas podem sentir cheiros, toques, ver e ouvir coisas de forma amplificada. Essa intensa receptividade sensorial é uma característica da neurodiversidade deles. Essa intensidade toda pode vir em várias "cores": psicomotora (muita energia, fala rápida), sensorial (hipersensibilidade a estímulos), intelectual (paixão por aprender), imaginativa (mundo interno rico) e emocional (sentir tudo muito profundamente). Dabrowski chamou isso de "Superexcitabilidades" e, às vezes, elas são tão intensas que são confundidas com condições médicas, como TDAH (a psicomotora) ou transtornos de ansiedade.
2. As Lutas Invisíveis: Conflitos e Desafios no Crescimento
Conforme o AHSD cresce, o rio da vida dele encontra pedras no caminho que os rios "normais" não encontram, ou não sentem da mesma forma. E é aí que surgem as "lutas invisíveis".
A Síndrome do "Eu Sou Maluco" e o Desencaixe Permanente: Um dos maiores "registros" é a sensação de ser diferente, de não se encaixar em lugar nenhum. O indivíduo se sente deslocado, estranho, porque as pessoas não o entendem e ele também não entende por que as pessoas não se interessam por tudo que ele se interessa. Para tentar se encaixar, ele pode criar um "personagem" que não se conecta com ninguém, e isso gera um estresse gigante. A Dr.ª Olzeni Ribeiro, que é superdotada, contou que se sentia "maluca" e escreveu um texto chamado "Ninguém Me Explicou Porquê Sempre Foi Maluco".
O Perfectionismo que Paralisa e o Medo de Errar: A pessoa AHSD tem uma necessidade de perfeição tão grande que, se não pode fazer algo do jeito "perfeito" que idealiza, ela simplesmente "trava" e não consegue se motivar. Isso leva a um sucesso acadêmico e profissional muito baixo, apesar da grande inteligência e criatividade. Eles lidam muito mal com os próprios erros e fracassos, chegando a evitar situações onde suas capacidades cognitivas serão testadas, como apresentações ou provas. É uma incapacidade de lidar com a frustração.
A Motivação "Foguete" e o Desafio da Disciplina: O AHSD tem uma "motivação foguete", quase só conseguindo fazer as coisas em estado de euforia, quando é algo super desafiador ou curioso. O problema é que a vida adulta e o trabalho exigem disciplina para fazer coisas que nem sempre são empolgantes. Eles não aprenderam a se motivar por recompensas externas, porque a motivação sempre foi intrínseca. É um sistema motivacional e atencional "rebelde". Isso pode levar a problemas como a procrastinação, que muitas vezes é mal interpretada como falta de caráter.
A Hiper-Responsabilidade e a Empatia "Corrosiva": Muitos desenvolvem um senso de hiper-responsabilidade muito cedo, preocupando-se excessivamente com os outros, com a situação do mundo, com a saúde emocional de quem conhecem. Essa empatia pode ser tão intensa que se torna "corrosiva" ou "patológica", fazendo com que a pessoa se prejudique para não magoar o outro.
O "Bambu Chinês" (A Trajetória de Desenvolvimento Assíncrono): Às vezes, a pessoa AHSD demora muito para "engrenar". Pode parecer imatura aos 20 anos, ou não ter sucesso financeiro/acadêmico aos 29, mesmo sendo muito inteligente. É como o bambu chinês, que passa 5-6 anos crescendo raízes invisíveis e só depois explode em altura. Isso aflige muito a família e a própria pessoa, que se cobra por perfeccionismo, culpa e medo do fracasso. Essa assincronia no desenvolvimento (cognitivo, emocional, físico) é uma característica fundamental da superdotação.
3. A Neurociência por Trás: Entendendo o "Porquê"
Os avanços da neurociência nas últimas décadas nos ajudam a entender que essas características não são "defeito de fabricação" ou "problemas morais", mas sim diferenças na fiação e maturação cerebral.
Cérebro Diferenciado: Indivíduos AHSD têm maiores volumes cerebrais em certas regiões, como os lobos frontais, parietais e temporais, e uma maior conectividade entre essas regiões. Isso permite um processamento mais rápido e eficiente de informações. O córtex pré-frontal, essencial para funções executivas, se desenvolve de forma mais lenta nessas pessoas.
Hipercérebro/Hipercorpo: Estudos mostram que a alta inteligência pode ser um fator de risco para distúrbios psicológicos (como transtornos de humor, ansiedade, TDAH, TEA) e doenças fisiológicas (alergias, asma, doenças autoimunes). Isso sugere uma ligação entre um "hipercerebro" e um "hipercorpo". A forma intensa de processar estímulos e a tendência à ruminação e preocupação podem levar à ativação crônica do eixo HPA (o sistema de resposta ao estresse), o que afeta o sistema imunológico.
Dupla Excepcionalidade (2e): Essa é a cereja do bolo da complexidade! Muitos AHSD também têm uma deficiência ou dificuldade de aprendizagem (como TDAH, autismo, dislexia). Essa combinação pode mascarar tanto a superdotação quanto a dificuldade, tornando o diagnóstico um verdadeiro quebra-cabeça. Por exemplo, a hipersensibilidade sensorial e o maior repertório de memórias (negativas e positivas) podem impactar como o 2e reage a situações, tornando experiências difíceis de "extinguir".
4. O Reconhecimento Formal: Avaliações e Diagnósticos
A "medalha" ou "registro oficial" de AHSD geralmente vem por meio de um processo de avaliação, que não é um bicho de sete cabeças, mas precisa ser feito com carinho e profundidade.
Testes Psicometricos: Testes de QI, como o WISC-IV, são ferramentas importantes para medir o quociente de inteligência e aspectos como memória de trabalho, velocidade de processamento, compreensão verbal e raciocínio fluido. Eles ajudam a entender como a mente da criança funciona e como ela aprende. Mas é crucial entender que a pontuação do QI não é o único indicador. Uma pessoa superdotada pode ter um QI na média se as condições do teste não forem ideais (cansaço, ansiedade, problemas de visão, etc.) ou se ela tiver outras características (2e) que mascarem a pontuação.
Avaliação Neuropsicopedagógica e Neuropsicológica Profunda: O ideal é ir além do número do QI. Uma avaliação aprofundada considera a história de desenvolvimento da criança, observações comportamentais, as experiências pessoais e a demanda do encaminhamento. É sobre quem a pessoa é, e não só sobre o que ela consegue fazer. Técnicas projetivas psicopedagógicas, por exemplo, buscam investigar os vínculos da criança (familiar, escolar, consigo mesma) através de desenhos e relatos verbais, fornecendo insights sobre a aprendizagem e os aspectos emocionais.
A Importância do Perfil: Uma boa avaliação vai entregar um perfil detalhado do indivíduo, com seu nível de superdotação, estilo de aprendizagem, perfil cognitivo e socioemocional, e sugestões de adequações necessárias. Isso é fundamental para que pais e educadores possam oferecer o suporte adequado.
5. O Caminho para a Autenticidade: Aceitar e Florescer
O "registro" mais importante, no final das contas, não é uma medalha ou um laudo, mas o autoconhecimento e a aceitação da própria condição.
Autoconhecimento é a Chave: Para alguém com AHSD, que muitas vezes tem uma identidade fraca e volátil por absorver tudo com intensidade e mudar de rota facilmente, o projeto principal não é "saber o que fazer da vida", mas "saber quem eu quero ser na vida".
Aceitar o Fardo e o Dom: É preciso parar de reclamar da condição e do jeito de funcionar. Não é sobre "normalizar" ou "encaixar", mas sobre gerenciar as intensidades, potencializar as forças e construir ambientes e relações que celebrem a singularidade.
Estratégias Práticas: Aprender a lidar com o hiperfoco (direcioná-lo, não brigar com ele), a desenvolver disciplina (já que não foi ensinado a fazer esforço naturalmente), e a ver erros como experiências de aprendizado, não como fracassos.
Comunidade e Suporte: Conectar-se com outros AHSD é valioso, pois a troca de experiências ajuda a perceber que não se está sozinho.
Em suma, a vida de uma pessoa com Altas Habilidades e Superdotação é uma jornada rica em "eventos" que, se bem interpretados, revelam uma neurodiversidade fascinante.
Desde a infância, com a mente fervilhando e uma sensibilidade aguçada, passando pelos desafios de se encaixar em um mundo que nem sempre a compreende, até a busca por um autoconhecimento profundo. Os "prêmios" e "reconhecimentos" podem ser os diagnósticos formais e as superações pessoais, mas o verdadeiro "troféu" é a aceitação da própria singularidade e a liberdade de usar esse potencial gigante para melhorar a si mesmo e o mundo!
É um convite para você olhar para si ou para o seu filho com outros olhos, com uma lente de compreensão e validação, e não de julgamento. Porque, no fim das contas, a luta pode ser invisível, mas o potencial é inegável! 😉